segunda-feira, 30 de junho de 2008

APÓLOGO CONTEMPORÂNEO

Alice entrou no quarto jogando a bolsa sobre a cama. Entre os objetos que dela escaparam, estava um livro já bastante marcado pelo tempo. Ela retirou algumas peças de roupa das gavetas e saiu. Mas como quem esqueceu algo, retornou, ligou o computador e saiu novamente. E quando o quarto já aparentava solidão, o barulho da máquina iniciando suas atividades despertou o livro que afundara sobre o edredom na cama.
_Saudações ao “novo” morador, se é que posso chamá-lo de “novo”. – disse-lhe a máquina, irônica.
– Boa tarde. Mas estou apenas de passagem, fui retirado da Biblioteca por essa simpática senhorita. De fato, sou sempre novo, mesmo quando re-visitado: uma viagem a um lugar conhecido jamais é a mesma, não é?
_ Falou em viagem, falou comigo! Você jamais alcançaria a rapidez com que navego pela internet.
_ Posso imaginar. Mas quem se senta à sua frente apenas recebe o que buscou. No entanto, quem vira minhas folhas sempre encontra algo mais. Eu e o leitor ficamos íntimos, somos ambos co-pilotos da viagem.
_ Já que você mencionou intimidade, não pode imaginar os segredos que posso armazenar em meus bancos de dados!
_ Ah! Realmente não! Prezo a privacidade, jamais sequer adiantei o desfecho da história a alguém.
_Sei... Mas você anda meio caidinho, não anda? – Desviou de assunto para compensar-se.
_ De modo algum! Sinto-me tão firme como no dia em que fui impresso e costurado. Essas manchinhas em minha pele apenas comprovam as noites de leitura, as viagens de ônibus a acompanhar meus leitores, e os anos de prestação de serviços à Cultura.
A jovem retornou, encerrando a conversa e a disputa entre egos. Já colocara seu pijama. Estava frio e não pretendia sair do quarto até a hora do jantar. Sentou-se em frente ao computador e depois disso somente ouvia-se o “tec” “tec” no teclado. Se lhe fosse transferida a palavra naquele momento, a máquina expressaria ao livro todo o seu orgulho por ter sido a primeira opção da garota. Mas, de repente, o quarto ficou no escuro. A energia logo voltou, mas a máquina já balbuciava palavras desconexas. Alice percebeu logo que havia algo errado e desligou o computador sem hesitar, amanhã o técnico daria um jeito.
Jogou-se na cama. Sob o edredom, não havia opção mais calorosa do que um bom livro. Como num ritual de iniciação, ela alisou-lhe a capa de couro, em seguida, abriu o exemplar e após tocar-lhe o papel macio, sentiu seu cheiro, adorava o cheiro dos livros antigos, pareciam-lhe objetos sagrados, e imaginava que mãos o haviam tocado antes dela.
Após algumas horas de emocionante narrativa, Alice adormeceu, escapava-lhe de uma das mãos o livro, ao seu lado, e dos lábios, um sorriso de quem retornara de um lugar especial.

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